Hora do almoço
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Hora do almoço
Hora de almoço.
Não era uma hora qualquer, jamais diga isso. Era O almoço.
O relógio atravessa o tempo, o tempo atravessa o corpo,
atravessa a copa e chega na cozinha.
Sinto o ânimo. O prato brilha, ofusca os olhos.
A família se entreolha e balança os garfos.
A comida cheira forte. Era o cheiro da família naquele arroz solto.
Ela come. Ele também. Os outros se servem.
Mordidas e barulhos mas ninguém se olha.
O olhar não se cruza.
A conversa é desconexa, não existe interesse.
Agora, olhando bem, o arroz empelotou. Queimou no fundo da panela.
O interesse da alma queimou junto, virou poeira de estrela.
Só eu me importei.
Chorei a noite toda: "que almoço, que desgraça". Sentam-se juntos mas não
sentem nada.
Vamos falar do mundo sem olhar para a tevê uma vez na vida!
Talvez encontrássemos um pouco de gente.
O relógio mexe o ponteiro. Eles tinham pressa. Eu nunca tive,
comendo no ritmo dos pássaros. Há quanto tempo não escuto um pássaro?
Mas eles engoliam e lufavam com a boca. O copo vira e eu grito.
Todos olham assustados. Repentinamente, os garfos caem sistematicamente.
Meu coração descompassa e as perguntas explodem:
"o que foi?"
"está louca?"
"terei criado uma filha que não sabe se portar à mesa?"
Eu me calo e o mundo se cala e
os pratos brilham, mas não me ofuscam. O relógio anuncia que é hora de
nos separarmos.
O céu observa e só. As nuvens querem sair, querem se mexer mas não podiam,
tinham que combinar comigo, nublados, escuros, bravios.
Tinham que continuar onde haviam de estar, acima da casa onde o almoço acontecia.
O pai se levanta, deixa o prato sujo na mesa. Diz "Até mais tarde, estou atrasado".
Sempre estamos tão atrasados...
Quem se senta agora é ela. Implacável, me olha de novo. A velha conformidade com seus
olhos carcomidos, suas costas rangendo e as mãos tamborilantes.
Ninguém reage à sua chegada. Só eu. Só.
Olho para o vazio dela. Ela olha pra mim e também vê um vazio pintado de vermelho.
Ela sabe que estou gritando por dentro. Quero sair da hora do almoço
mas estou sempre de volta! Volto para o solo. Um solo triste,
um solo estranho. As notas não combinam, ficam penduradas.
E descobro que são notas solitárias. Eu descubro que sou uma nota.
A senhora conformidade se vai, o relógio faz o barulho irritante de sempre.
Todos se levantam mecanicamente mas eu insisto:
Eu me mantenho. O estandarte, o grito que calaram permanece.
Os pés se calcificam no solo e minha odisséia será, para sempre, aquele grito interrompido.
Eu fico!
Eu fico por pura teimosia...
por pura poesia...
por meu maior desatino de razão...
por pura desconformidade com o frio que a humanidade adotou como
filho.
Curto sozinha minha maior obra, o maior dos saltos, o passo de Armstrong.
Mas ninguém escuta o grito no vazio do espaço...
Não era uma hora qualquer, jamais diga isso. Era O almoço.
O relógio atravessa o tempo, o tempo atravessa o corpo,
atravessa a copa e chega na cozinha.
Sinto o ânimo. O prato brilha, ofusca os olhos.
A família se entreolha e balança os garfos.
A comida cheira forte. Era o cheiro da família naquele arroz solto.
Ela come. Ele também. Os outros se servem.
Mordidas e barulhos mas ninguém se olha.
O olhar não se cruza.
A conversa é desconexa, não existe interesse.
Agora, olhando bem, o arroz empelotou. Queimou no fundo da panela.
O interesse da alma queimou junto, virou poeira de estrela.
Só eu me importei.
Chorei a noite toda: "que almoço, que desgraça". Sentam-se juntos mas não
sentem nada.
Vamos falar do mundo sem olhar para a tevê uma vez na vida!
Talvez encontrássemos um pouco de gente.
O relógio mexe o ponteiro. Eles tinham pressa. Eu nunca tive,
comendo no ritmo dos pássaros. Há quanto tempo não escuto um pássaro?
Mas eles engoliam e lufavam com a boca. O copo vira e eu grito.
Todos olham assustados. Repentinamente, os garfos caem sistematicamente.
Meu coração descompassa e as perguntas explodem:
"o que foi?"
"está louca?"
"terei criado uma filha que não sabe se portar à mesa?"
Eu me calo e o mundo se cala e
os pratos brilham, mas não me ofuscam. O relógio anuncia que é hora de
nos separarmos.
O céu observa e só. As nuvens querem sair, querem se mexer mas não podiam,
tinham que combinar comigo, nublados, escuros, bravios.
Tinham que continuar onde haviam de estar, acima da casa onde o almoço acontecia.
O pai se levanta, deixa o prato sujo na mesa. Diz "Até mais tarde, estou atrasado".
Sempre estamos tão atrasados...
Quem se senta agora é ela. Implacável, me olha de novo. A velha conformidade com seus
olhos carcomidos, suas costas rangendo e as mãos tamborilantes.
Ninguém reage à sua chegada. Só eu. Só.
Olho para o vazio dela. Ela olha pra mim e também vê um vazio pintado de vermelho.
Ela sabe que estou gritando por dentro. Quero sair da hora do almoço
mas estou sempre de volta! Volto para o solo. Um solo triste,
um solo estranho. As notas não combinam, ficam penduradas.
E descobro que são notas solitárias. Eu descubro que sou uma nota.
A senhora conformidade se vai, o relógio faz o barulho irritante de sempre.
Todos se levantam mecanicamente mas eu insisto:
Eu me mantenho. O estandarte, o grito que calaram permanece.
Os pés se calcificam no solo e minha odisséia será, para sempre, aquele grito interrompido.
Eu fico!
Eu fico por pura teimosia...
por pura poesia...
por meu maior desatino de razão...
por pura desconformidade com o frio que a humanidade adotou como
filho.
Curto sozinha minha maior obra, o maior dos saltos, o passo de Armstrong.
Mas ninguém escuta o grito no vazio do espaço...
Aleleeh- Imperatriz de Jade
- Data de inscrição : 22/12/2012
Idade : 28
Localização : Sampa - SP
Emprego/lazer : Designer de Interiores e Artista
O que sou
Raça: Fada
Classe: Samurai
Re: Hora do almoço
Excelente! Esse é o motivo porque eu não gosto de almoçar vendo televisão. Acho mesmo que esse momento de "quebra" nas tarefas do dia deveria ser um momento de alegria para a família, para conversarem e trocarem ideias sem pressa, só que isso raramente acontece nas casas das pessoas. Eu tenho sorte nesse ponto, mas aí é coisa d criação
Stein- Alquimista
- Data de inscrição : 21/10/2011
Idade : 34
Localização : São Paulo, San Rafaello Park
Emprego/lazer : Arquiteto da Matrix - um salve, mano Asimov
O que sou
Raça: Humano
Classe: Alquimista
Re: Hora do almoço
A gente até liga a tevê pra comer, mas nunca deixamos de conversar (todos os seis ao mesmo tempo é claro kkkkk).
A apatia é o principal sintoma dessa nossa sociedade atual. É pior do que qualquer outro tipo de doença.
É o que realmente nos ameaça.
Muito bom o texto fia
A apatia é o principal sintoma dessa nossa sociedade atual. É pior do que qualquer outro tipo de doença.
É o que realmente nos ameaça.
Muito bom o texto fia
isaac-sky- Guarda Real
- Data de inscrição : 21/10/2011
Idade : 30
Localização : Entre Nárnia e a Terra Média
Emprego/lazer : Dominar o mundo/ RPG/ SKA
O que sou
Raça: Humano
Classe: Ninja
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